Paulo
Suess
Na construção do “bem viver”, dois
eixos são sumamente importantes:
- o “bem viver” para todos, quer
dizer, o combate contra uma sociedade de classes e privilégios, e
- o “bem viver” para sempre, que é o
“bem viver” com memória histórica, o bem viver não apenas dos sobreviventes e
vencedores, mas o bem viver que dá voz e ouvido aos vencidos.
Portanto, o bem viver tem uma
dimensão que perpassa o tempo, uma dimensão transhistórica, e uma dimensão
contemporânea e simultânea, que enfoca o aqui e agora do indivíduo e da
sociedade. O bem viver não é construído em Spá nem em estúdio de wellnes, mas num laboratório no qual se
entrelaçam memória histórica, ação política e gratuidade.
Não reduzimos a felicidade ao
bem-estar material nem separamos o bem estar material do bem-estar espiritual.
Praticamente todas as lutas sociais
representam tentativas de equilibrar felicidade individual e moral social, ou,
como se diz no mundo andino, são buscas de harmonia, de harmonia sociocultural
entre o individuo e o coletivo, e harmonia entre os seres humanos e a natureza
da qual são parte integrante.
Essa busca de harmonia se
transformou em lutas políticas. A harmonia não é dada. Ela é uma conquista que
exige vigilância permanente.
Hoje, o capitalismo, essa nova
colonização pelo capital, pela ideologia do desenvolvimento, pelo consumo e
pela competição, procuramos curar as patologias do desequilíbrio que se
manifesta pela acumulação, pelo crescimento desenfreado e pela aceleração.
Procuramos novos conceitos de propriedade e desenvolvimento para construir
novas realidades.
No meio de lutas pela redistribuição
dos bens (terra, água, ar) e pelo reconhecimento do outro procuramos
desvincular o bem-estar do crescimento predatório (agrotóxicos, expansão sobre
a propriedade dos outros, consumo autodestrutivo). Percebemos que o capitalismo
não tem patologias. Ele é a patologia.
1.
Um olhar rápido sobre a história do “bem viver”
Um olhar histórico nos mostra, como
o bem viver pode ser truncado por estruturas de uma sociedade aristocrática,
por um sistema colonial ou pelo próprio capitalismo patológico.
1. “A primeira nova crônica e bom governo” de Felipe Guamán Poma de
Ayala (1535-1616?) representa a tentativa
indígena de descrever, através de um “bom governo”, a possibilidade do “bem
viver”. Guamán Poma se declara descendente da linhagem incaica e cristão. Em
busca do “buen Govierno” e do “buen vivir”, que são conversíveis, ele denuncia
profeticamente a traição do Evangelho e dos princípios de um bom governo
através de inúmeros desenhos e poucas palavras.[1] No sistema colonial, ambas as
culturas, a cristã e a andina se autodestruíram (autorelevantes). O bem viver é
insustentável em ilhas do sistema colonial.[2] O
bem viver envolve a humanidade em lutas universais, antiescravagistas e
anticoloniais.
2. A Independência dos países
latino-americanos nem sempre foi um avanço em direção do bem viver. Os
mecanismos da colonização e de uma sociedade escravocrata podem também
continuar em países independentes. As elites mestiças, crioulas e brancas que
assumiram os governos ditos independentes, muitas vezes reproduziram os
mecanismos de dominação no interior de seus países. Nos países emancipados,
chamados independentes, afro-americanos e indígenas, geralmente, não
participaram do “bem viver” pós-colonial.
2. Desafios ao “bem viver” hoje
O sistema capitalista é incapaz de
produzir o bem viver de todos os cidadãos. Consumismo e fome são expressões
desse desequilíbrio na distribuição dos bens da terra. Crescimento, expansão e aceleração se tornaram palavras mágicas,
apoiadas por tecnologias cada vez mais sofisticadas a serviço da substituição
de trabalhadores. No atual projeto, na aceleração da produção e na acumulação
do capital, não se trata apenas de uma manipulação de objetos mortos. Capital e
produção representam relações sociais mediadas por exploração, alienação e
coisificação. A relação utilitarista “custo-benefício” não é uma mera relação
comercial com sua lógica própria. Nela está embutida uma relação social.
Quem produz mais barato é aquele que
se submete a condições de um trabalho penoso. Consequência desta nova
configuração do trabalho são os mal empregados, os desempregados, os migrantes
em busca de melhores condições de sobrevivência.
O que está em questão é coesão e
solidariedade social interna das sociedades. Essa solidariedade é atropelada
pela concorrência do mercado globalizado que vive da exclusão e não da
integração dos cidadãos. Redistribuição,
integração social pelo trabalho e participação do lucro se tornaram direitos
humanos. O poder judiciário está despreparado para garantir esses direitos.
A exploração irracional atinge não
só operários, indígenas ou migrantes, mas também a nossa irmã natureza. A
devastação de florestas e da biodiversidade, “coloca em perigo a vida de
milhões de pessoas”, em especial a vida dos “camponeses e indígenas, que são
expulsos para as terras improdutivas e para as grandes cidades para viverem
amontoados nos cinturões de miséria” (DAp 473).
O que está em questão é o “atual
modelo econômico, que privilegia o desmedido afã pela riqueza, acima da vida
das pessoas e dos povos” (DAp 473).
O “bem viver” está ameaçado por uma
crise cultural profunda que se manifesta como crise de sentido, como
fundamentalismo político-religioso e como consumismo. A dissolução do sentido
da história humana numa mera história natural e a afirmação da verdade única
como negação do reconhecimento do outro e do pensamento diferente representam
um potencial permanente de guerra e violência, inclusive no interior das
religiões.
Depois de guerras para a implantação
da democracia, hoje essa democracia liberal está numa profunda crise estrutural
pela confusão dos poderes (executivo, legislativo e judiciário) e pela ética. A democracia liberal não permite a
participação satisfatória do povo, sobretudo dos pobres, dos excluídos e dos
povos indígenas, especialmente quando são minoria.
A justiça em nossos países tornou-se
uma justiça formal, morosa e caríssima, que atua, muitas vezes, longe dos
lugares onde acontecem as injustiças, e não serve aos povos indígenas e pobres,
que desconhecem os trâmites legais e não conseguem pagar advogados competentes
para garantir seus direitos básicos. O aparato policial não traz segurança à
população e as condições inumanas das nossas cadeias fazem delas verdadeiras
escolas do crime.
Acreditamos que outro mundo e outro
Estado são possíveis, porque o atual tripé crescimento econômico, segurança
social e democracia política não oferecem perspectivas do bem viver universal.
Não entramos no jogo de alternativas
perversas: democracia com fome e miséria, ou bem-estar material sem
participação, sem liberdade política e sem horizonte de sentido, ou
prosperidade econômica do país com ditadura e fome.
A construção do Estado do bem viver
é uma construção cultural (não natural). Construir o bem viver, é contracultural.
Essa construção significa:
- descolonizar as instituições políticas,
- desmercantilizar os saberes, a fé, a escola, saúde,
- desprivatizar o que deve ser de domínio público,
- frear a patologia da aceleração: somos o freio de emergência.
3. Uma luz no túnel: sumak kawsay
Enquanto nossos países estão
competindo com os países com economias fortes, nas discussões constitucionais
da Bolívia e do Equador irrompeu uma proposta que procura superar as políticas subordinadas
aos projetos de hegemonia competitiva. Essa proposta, de origem kechwa, se
articula em torno de um novo paradigma do “bem viver”, em kechwa, “sumak
kawsay”.
O “sumak kawsay” é uma utopia
política não muito distante da utopia do Reino. Ambos são precedidos ou
representam um pachakuti, uma
reviravolta social. O pachakuti
restabelece o equilíbrio perdido e abre o caminho para “viver em plenitude”.
Na “Conferencia de los Pueblos sobre
El Cambio Climático y los Derechos de La Madre Tierra”, num “Acordo dos Povos”
do dia 22 de abril em Cochabamba, o “sumak
kawsay” foi novamente consagrado como paradigma planetário.
3.1.
A proposta do “viver bem” equatoriano
Em
oposição à lógica do capitalismo neoliberal que propõe “viver melhor” com mais
mercadorias que ameaçam o equilíbrio ecológico e social, o conceito do “sumak kawsay” propõe repartir os bens
para que todos possam “viver bem”. A vida humana de todos em harmonia com a
natureza é o eixo central dessa proposta.
O Plano Nacional Para El Buen Vivir
(2009-2013) do Equador resume bem a proposta do paradigma do “viver bem”. O
significado profundo desse Plano está na ruptura conceitual do Consenso de
Washington (1989, era neoliberal) e dos conceitos ortodoxos do desenvolvimento
de hoje (crescimento, rapidez, exportação). O paradigma do “viver bem”
representa a busca, em longo prazo, de um novo pacto social, que é construído
continuamente.
Rupturas necessárias
a) A ruptura
constitucional e democrática, para sentar as bases de uma comunidade
política inclusiva e reflexiva, que aposta na capacidade do país para definir
outro rumo como sociedade justa, diversa, plurinacional, intercultural e
soberana. Para o projeto do “viver bem” é indispensável a construção de uma
cidadania radical, que estabelece as condições materiais de um projeto nacional
inspirado na igualdade em diversidade.
b) A ruptura
ética para garantir a transparência, a prestação de contas e o controle
social que favorecem o reconhecimento mútuo entre as pessoas e a confiança
coletiva.
c) A ruptura
econômica, produtiva e agrária para superar o modelo de exclusão herdado e
para orientar os recursos do Estado para a educação, saúde, investigação
científica, tecnologia, para o trabalho e a reativação produtiva, em harmonia e
complementaridade entre zonas rurais e urbanas. Essa ruptura deve
concretizar-se através da democratização do acesso à água e terra, ao crédito e
conhecimento.
d) Ruptura
social para que, através de uma política social articulada a uma política
econômica inclusiva e mobilizadora, o Estado garante os direitos fundamentais.
Identidade ética do “buen vivir”
A
definição do Buen Vivir implica reconhecer que se trate de um conceito
complexo, vivo, não linear, porém historicamente construído, e que está em
constante resignificação. Por Buen Vivir os autores entendem “a satisfação das
necessidades, o alcance de uma qualidade de vida e morte dignas, a convivência
social e ecológica em harmonia. O Buen Vivir pressupõe ter tempo livre para o
lazer, e que as liberdades, oportunidades e capacidades reais dos indivíduos
sejam ampliados.
Medidas práticas
Precisamos
um novo modo de geração de riquezas e redistribuição numa sociedade
pós-petrolífero:
a) Democratização dos meios de produção,
redistribuição das riquezas e diversificação da propriedade;
b) Aumento de produtividade real e diversificação
das exportações;
c) Inserção estratégica e soberana no mundo e na
América-Latina;
d) Conectividade e telecomunicações para construir a
sociedade da informação;
e) Mudança da matriz energética;
f) Bien Vivir no marco de uma macroeconomia
sustentável;
g) Sustentabilidade, conservação, conhecimento do
patrimônio natural;
h) Desenvolvimento e ordenamento territorial,
desconcentração e decentralização;
i) Poder cidadão e protagonismo social.
3.2. Proposta do Bien Vivir boliviano
O “buen
vivir” é um conceito de vida longe dos parâmetros do crescimento econômico,
longe do individualismo, da relação custo-benefício, da relação utilitarista
entre os seres humanos e a natureza, longe da mercantilização de todas as
esferas da vida e da violência culturalmente não mais controlada.
O “sumak
kawsay” propõe a incorporação da natureza na história, não como fator produtivo
nem como força produtiva, mas como parte inerente ao ser social. Os seres
humanos fazem parte da natureza. O “buen vivir” supera as dicotomias
cartesianas, entrelaça o tempo linear com o tempo circular, o mito com a
história e a objetividade da produção com a subjetividade da “mãe terra”.
“Buen
vivir”, que é possível quando o ser humano vive em comunidade com a natureza,
representa uma re-união “fraternal” entre a esfera da política e a esfera da
economia. No “buen vivir” o valor de uso da mercadoria está acima do valor de
troca (fraudado pela mais-valia expropriada). O ser individualizado da
modernidade tem que reconhecer a existência ontológica de outros seres que têm
direito a existir e viver com sua alteridade.
Em
entrevista recente, o ministro das Relações Exteriores da Bolívia e especialista
em cosmovisão andina, David Choquehuanca, elencou como essência do “viver bem”:
a) Priorizar
a vida e os direitos cósmicos
Viver Bem
significa buscar a vivência em comunidade, onde todos os integrantes se
preocupam com todos. O mais importante não é o ser humano (como afirma o
socialismo) nem o dinheiro (como postula o capitalismo), mas a vida com mais
simplicidade possível. Viver bem signnifica dar prioridade aos direitos
cósmicos antes que aos Direitos Humanos. É mais importante falar sobre os direitos
da Mãe Terra do que falar sobre os direitos humanos.
b) Construção
do consenso
Viver Bem
significa buscar o consenso entre todos. Na hora de conflitos se procura chegar
a um ponto de neutralidade em que todos coincidam. Procura-se aprofundar a
democracia para que não haja submissão. Submeter a minoria à maioria não é
“viver bem”.
c) Respeitar
as diferenças
Para viver
em harmonia é necessário respeitar a diferença. O respeito se estende a todos
os seres que habitam o planeta (animais, plantas). O respeito vai além da
tolerância. Aceitar a diferença
significa também aceitar a semelhança.
d) Ver
na diferença a complementaridade
Nas
comunidades, a criança se complementa com o avô, o homem com a mulher, a terra
com a água, a humanidade com os vegetais.
e) Equilíbrio
(não-exclusão dos opostos)
Bem Viver
significa levar uma vida equilibrada com todos os seres dentro de uma
comunidade e com a natureza. Vivemos atualmente num projeto que exclui.
Democracia, justiça, meios de comunicação, terra, natureza – em tudo se mostram
mecanismos de exclusão
f)
Valorizar a identidade
Viver bem
significa valorizar e recuperar a identidade. Esta identidade tem como base
valores que resistiram mais de 500 anos e que foram transmitidos pelas famílias
e nas comunidades que viveram em harmonia com a natureza e o cosmos.
g) Saber
comer, beber, dançar, trabalhar
Em tudo
prevalece o equilíbrio e os aprendizados ancestrais. O trabalho é algo
comunitário e festivo e não produção de mais-valia.
h) Saber
se comunicar
Bem Viver
é saber se comunicar. Rezar significa comunicar (cacique Babau). O diálogo é o
resultado desta boa comunicação ancestral nas comunidades (oralidade!).
i) Escutar
os anciãos
Bem Viver
significa ler as rugas dos avós para poder continuar o caminho. “Nossos avós
são bibliotecas ambulantes”.
Colonização e civilização não
venceram o discurso do “bem viver”.
O sumak
kawsay (“buen vivir”) emerge novamente como tarefa, imperativo e
salva-vidas; faz parte daquela sabedoria divina que a humanidade recebeu por
muitos caminhos. Ela age, como a sabedoria do Reino, como cunha nas rachaduras
da sociedade alienada.
4.
Construção do “bem viver” como crítica, ascese e solidariedade
Como cristãos podemos compreender o
bem viver como vida em plenitude e como sabedoria do reino, sem privilégios,
sem prestígio. O bem viver no horizonte da solidariedade não é para nós, é para
os outros: “A outros Ele ajudou, para si mesmo não sabe fazer nada”. Lutamos
como servos para que ninguém precise ser servo.
O nosso bem viver é resultado do bem
viver do outro, e não como compensação transcendental, mas no aqui e agora. Os
respingos da felicidade do outro podem iluminar nossa vida, como as dores do
outro nos mantém no caminho e na luta.
O contexto político-cultural de hoje
dificulta assumir publicamente o conflito social como motor para a construção
do bem viver. Quem fala em luta de classe parece não ter compreendido as
mudanças de época. Mas um novo modelo de sociedade e desenvolvimento não vai
emergir gratuitamente. Por causa dos pobres somos obrigados de nos fazer
presentes nessas lutas, evangelicamente responsáveis e socialmente relevantes.
Através de pequenas compensações e
através de uma legalidade formal, o capital conseguiu impor um contentamento
superficial. Líderanças dos movimentos sociais foram cooptados por cestas
básicas de comida e medidas de mitigação que representam o prato enfeitado
daquele que é levado à forca.
A “ação
afirmativa” substituiu a “ação crítica”. Num contexto de alienação generalizada e de silêncios comprados, temos
a tarefa de “desafinar o coro dos contentes” (Torquato Neto) e desgovernar a
nau dos adaptados que se contentam com o pouco que o gozo regressivo à fase
oral e anal oferece de maneira destrutiva via consumo e acumulação. O bem
viver para todos e sempre significa puxar o freio de emergência do projeto
acelerado e desgovernado em curso e propor outro projeto civilizatório.
A vida dos cristãos é atravessada
pela cruz que assumimos por causa do bem viver dos outros e pela gratuidade.
Anunciamos o Reino de Deus como libertação da servidão. A radicalidade da
encarnação (e inculturação) tem o nome de solidariedade (cf. Gaudium et spes, 32).
Solidariedade, hoje, significa
despojamento e ascese. Ascese para nós é libertação do supérfluo, para que
todos possam ter o necessário para o bem viver. A ascese é o protesto contra nossa humilhação como consumidores. O
bom é o inimigo do melhor e do mais. Precisamos aprender a viver melhor com menos.
No
horizonte evangélico de uma igualdade radical não existe lugar para a
apropriação privada da vida boa, nem da fé, da esperança e do amor. A fé nos foi dada por
causa dos desacreditados. A esperança nos foi dada por causa dos desesperados.
O amor nos foi dado por causa dos desprezados. Tudo que recebemos pertence aos
necessitados.
Vida boa para todos e para sempre! A
dimensão da cruz é a dimensão da ruptura. Ela nos coloca no meio dos grandes conflitos.
Nosso equilíbrio está na articulação entre luta e contemplação. O bem viver, no
horizonte de todos e para sempre, existe somente no horizonte da ressurreição,
que é justiça definitiva para todos e insurreição
contra o absurdo!
[1] POMA DE
AYALA, Felipe Guamán, El primer nueva
corónica y buen gobierno, México, Siglo Veintiuno, 1980, n. 15.
[2] Cf.
FARÍAS, Fernando Amaya. Indio y Cristiano
em condiciones coloniales. Lectura teológica de la obra de Felipe Guamán
Poma de Ayala: Nueva Crónica y Buen Gobierno. Quito, Abya Yala, 2008.
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